Impressões de uma viagem à província de Fujian 福建 - (II)

Domingo, dia 19 de Fevereiro de 2017
Xiamen 厦门

Chego a Xiamen no dia em que cumpro 31 anos de vida feliz. Os meus amigos asiáticos são os primeiros a dar-me os parabéns por virtude do fuso horário, mas são também os últimos parabéns que recebo por causa do bloqueio da China continental ao Facebook e à Google. Preferi não me deixar incomodar por essas restrições para aproveitar melhor o que a China tem para dar, e prometi também não tirar demasiadas fotografias com o meu iPhone novo (apesar da nitidez ser muito superior à do antigo), nem captar imagens sem primeiro contemplar aquilo que me despertou a atenção desprovido de quaisquer lentes ou ecrãs de intermedeio.

Como podem as pessoas dizer que visitaram um lugar quando na verdade não descolaram os seus olhos do telemóvel só para tirar umas centenas ou milhares de fotografias que em nada superam as que já se encontram na internet? Pondo o telefone no bolso, elevo o olhar e posso encarar as pessoas como deve ser - apesar de tantas estarem também absorvidas pelos mundos que aquela meia-dúzia de centímetros quadrados luminosos lhes oferece.

As praias da ilha e o seu mar vigiados pelas torres gémeas de Xiamen

Apesar de não ser a maior cidade (apenas 1,8 milhões de pessoas) nem a capital da província, a ilha de Xiamen é a sede comercial e financeira de Fujian. Antigamente conhecida no Ocidente por Amoy, Xiamen foi visitada por vários navegadores e viajantes, tendo os Portugueses sido os primeiros europeus a fazer a grande viagem marítima no ano de 1541. Em Chinês escrito, cada caractere ou ideograma corresponde a um significado que se exprime em Mandarim falado com apenas uma sílaba. Assim, Xiamen 厦门 é um nome composto por Xià (palácio ou mansão) e Men 门 (porta ou portal), e significa “porta do palácio”.

O hotel onde fiquei chama-se Millennium Harbourview Hotel Xiamen e pertence a uma cadeia hoteleira que já experimentei noutra viagem à China. Não se pode comparar este hotel citadino ao artístico Millennium Resort Hangzhou, que fica nas viçosas colinas que se desenvolvem desde o Lago Oeste de Hangzhou 杭州西湖e do Rio Qiantang 钱塘江em direcção à aldeia de Longjing 龙井, famosa pelo seu chá verde com o mesmo nome. Oh, que boas memórias dessa viagem também! Mas voltando a Xiamen, o hotel é bastante aceitável e está numa zona onde confluem a baixa da cidade com os seus arranha-céus típicos da finança, uma ruas de prédios de 3 andares em estilo colonial e com boas lojas nos rés-do-chãos, e um bairro de ruas mais apertadas com muita vida e variedade gastronómica. Lá, de noite, pude experimentar uns magníficos pescoços de patos picantes, que me deram num saco de plástico como se se tratassem de guloseimas. Protestei que era muito, que não conseguia comer tudo aquilo naquele momento. “Não se preocupe”, explicaram-me, “pode ir comendo ao longo dos próximos três dias, que isso aguenta bem”.

Canhão Krupp do século XIX, o maior do género, no forte Huli Shan 胡里山

Durante o dia passeei pela orla costeira, cheia de crianças e adultos que brincavam nas praias de areia clara. O clima e a flora são sub-tropicais, com palmeiras e coqueiros com côcos enormes e verdes. Fui a uma aldeia de pescadores onde comi tofu picante. Sabe menos mal que a pestilência do seu cheiro, mas de facto não é um alimento que me entusiasme. Valeu o picante que disfarçou aquele gosto desagradável do tofu e tornou suportável a sua consistência algo esponjosa. Mais adiante, pedi um côco com uma palhinha que me soube bem de refrescante que foi. E em pouco tempo estávamos no antigo forte Huli Shan 胡里山, agora transformado em museu da guerra, em especial dos canhões. Entre algumas dezenas de canhões de ferro das dinastias Ming 明朝 (1368–1644) e Qing 清朝 (1644–1911), a principal atracção deste museu era um enorme canhão Krupp com cerca de 87.1 toneladas de peso, 13.9 metros de comprimento e um alcance de fogo na ordem dos 19.8 quilómetros. Considerado o maior canhão costeiro do mundo do século XIX ainda completo, esta peça de artilharia foi encomendada pela China à Alemanha, que recebeu alguns soldados na fábrica da Krupp em Essen para treino especializado com o novo brinquedo. Anos mais tarde, o canhão Krupp viria a afundar um navio japonês, facto muito celebrado no museu.

Antigas caixas de munições, agora canteiros para flores

Diante deste forte em Xiamen, a apenas 2 quilómetros de distância, está a ilha de Kinmen 金门 (ou Quemoy) que é administrada pela República da China 臺灣 (Taiwan). Qualquer chinês da República Popular da China chama a Taiwan de “a nossa Província de Taiwan” e o assunto continua a ser muito delicado e emotivo para eles. Para se ver um chinês triste, basta perguntar-lhe acerca de Taiwan. Em ambas as crises do Estreito de Taiwan nos anos 50 do século XX trocaram-se tiros de canhão de um lado para o outro, e com os restos de bala que encontravam na praia os habitantes de cada lado derretiam o metal para fazer facas que ainda hoje são vendidas nas lojas de recuerdos. E entretanto, grandes caracteres de um lado e do outro do canal fazem propaganda comunista ou nacionalista, consoante a ilha de que falamos. Os ânimos entre as duas partes continuam em ebulição.

O trânsito no Estreito de Taiwan: navios de recreio, pesca, comércio e guerra

Depois de me banquetear na cantina da Universidade de Xiamen, peço desculpa aos meus amigos e retiro-me para o hotel onde caio redondo na cama, com muito sono para acertar. Durmo bastante, na esperança de aguentar melhor o dia seguinte. O mais complicado destas viagens é lidar com o jet lag. Apenas acordo para jantar, dar uma volta ao quarteirão para ajudar à digestão, e voltar ao hotel para dormir o resto da noite, que o dia seguinte promete.

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