Nas últimas semanas várias notícias têm cruzado o
Atlântico com o nome de Brett Kavanaugh, o homem que o Presidente Trump escolheu
para substituir o Juiz Anthony Kennedy no Supremo Tribunal dos EUA. O Supremo
Tribunal é a última instância de justiça nos EUA e os seus 9 juízes têm a
competência de julgar em conjunto os casos que lhes chegam, à luz da
Constituição dos EUA e das suas emendas. A Constituição dos EUA, em vigor há 230
anos, é uma das mais curtas e antigas constituições do Mundo. A sua brevidade,
uma boa leitura da natureza humana e o contexto cultural americano onde se
insere asseguram que este documento seja respeitado até hoje.
Supremo Tribunal dos EUA - Washington D.C. |
No entanto, e sobretudo a partir da segunda metade
do século XX, alguns juízes adoptaram uma atitude mais subjectiva perante
o texto constitucional, fazendo uma interpretação pessoal e livre que adaptasse
as normas aos desafios dos tempos presentes – o que quer que isso signifique –,
por vezes torcendo argumentos de forma a justificar as suas opiniões e
sensibilidades políticas mais íntimas. Estes são os “juízes activistas” que são
a maioria no Supremo Tribunal desde os anos 70, controlando-o. São os
responsáveis por decisões como a “Roe v Wade” que em 1973 deu um parecer
positivo à liberalização do aborto nos EUA. Por oposição, há juízes mais
conservadores na interpretação da constituição, que tentam cingir-se ao texto e
ao espírito da lei, isto é, o propósito original com que foi feita, tendo em
conta a actualidade mas também os autores e a altura em que foi promulgada. Quem
segue esta filosofia são os chamados “juízes originalistas”. É óbvio que há
vários matizes entre estas duas atitudes ou escolas de pensamento, tantos
quantos os juízes que pelo Supremo Tribunal dos EUA têm passado. Porém, é útil simplificarmos
a questão desta maneira para compreendermos a principal tensão neste debate nas
últimas décadas.
Uma das razões principais pela qual Donald Trump ganhou
o voto mais cristão não foi seguramente a sua conduta pessoal, mas o facto de
ter apresentado aos eleitores uma lista de candidatos ao Supremo Tribunal dos
EUA, prometendo nomear apenas pessoas que constassem dessa lista. Perante a
alternativa catastrófica que, no campo dos costumes, personificava Hillary
Clinton, estes eleitores sentiram a excepcionalidade do momento e decidiram (apesar
de tudo o resto) dar a Trump o voto. Sabendo que os juízes do Supremo Tribunal
têm um mandato vitalício e tendo em conta que o juiz originalista Antonin
Scalia tinha morrido no final da Administração Obama, era importante para os
republicanos impedir que o Presidente Obama nomeasse um juiz activista para o
seu lugar e conseguiram adiar essa decisão até que o próximo presidente tomasse
posse. Já como presidente, Trump nomeou o juiz originalista Neil Gorsuch que
foi aprovado com sucesso no Congresso americano. Esta nomeação encontrou alguma
resistência da parte dos Democratas, que enfim se resignaram com o resultado
pois o equilíbrio de poder no Supremo Tribunal não tinha sofrido alterações. No
entanto, em Junho deste ano o juiz Anthony Kennedy decidiu reformar-se e deixou
o seu lugar aberto no final de Julho. Embora não fosse um dos juízes mais
activistas, Kennedy alinhava regularmente com eles. A sua substituição por um
juiz originalista resultaria numa histórica alteração de equilíbrio no Supremo
Tribunal dos EUA, ficando os conservadores em maioria talvez pela primeira vez
nos últimos 50 anos.
Este é o contexto em que o Presidente Trump nomeia
Brett Kavanaugh, um originalista, para juiz do Supremo Tribunal. Com um curriculum profissional adequado para o
cargo a que é proposto, Kavanaugh não agrada aos Democratas por três razões: 1)
é originalista; 2) vai substituir um activista e remetê-los a uma minoria no
Supremo Tribunal; e 3) fez parte da equipa do procurador Kenneth Starr na
investigação que este conduziu ao Presidente Bill Clinton. Com Kavanaugh
no Supremo Tribunal, os Clinton são duplamente atingidos por dois fantasmas: a
hipótese de decisões que lhes são tão caras no campo dos costumes serem revogadas,
como a “Roe v Wade” sobre o aborto ser revista à luz do direito constitucional da
inviolabilidade da vida humana; e a possibilidade das informações recolhidas
por Kavanaugh nessa investigação a Clinton encontrarem novos seguimentos.
O resto da história já conhecemos. Sabendo que os
republicanos têm a maioria no Senado e que iriam confirmar Kavanaugh como o
próximo juiz do Supremo Tribunal, os democratas vão tirando da sua cartola
todos os coelhos que puderem de forma a adiar essa decisão para depois das
próximas eleições intercalares de 6 de Novembro, onde esperam ganhar lugares suficientes
para impedir esta nomeação e propor outro juiz que seja do seu agrado. Trump
também não está imune a críticas, pois esta divisão e constante clima de confronto servem
os seus propósitos eleitorais de reeleição em 2020. E partindo do princípio que
Kavanaugh é inocente dos oportunistas escândalos de que foi acusado no último
momento, pelo meio fica um reputado homem e a sua família destroçados.
Em relação à tensão entre originalistas e
activistas, apenas deixo mais uma questão: não seria melhor que os juízes
fizessem justiça de acordo com a lei e os políticos apenas legislassem? Defendo
que se deve preservar o mais possível a independência entre o poder político e
judicial: os juízes devem interpretar a lei como ela é, mesmo que pessoalmente com
ela não concordem; e os políticos devem legislar, fazer emendas e alterações às
leis sempre que acharem necessário. É para isso que lá estão. Esta extrapolação
de competências em ambos os lados prejudica o Estado de Direito - Rule of Law.
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