A vida é um desempate permanente

Postal antigo alusivo aos Campinos


As grandes searas da campina, embora desafiem as alentejanas, não lhes levam a palma. Mas o toiro que irrompe do curro, negro e luzidio, e o cavalo que o espera, nédio e nervoso entre as esporas do cavaleiro, esses não temem confronto e são o produto específico da terra ribatejana. Só nela o puro-sangue pode encontrar o seu húmus, a virgindade dum solo que um deus ainda visita e fecunda. Ele e o homem que o domina, não em luta desigual e traiçoeira, mas saltando-lhe para o lombo indomado ou recebendo-lhe a marrada impetuosa e cega no peito. Na articulação dos três lados do triângulo – campino, cavalo e toiro – conjugam-se as últimas forças viris que restam a Portugal dos tempos livres da Criação, das eras selvagens e testiculares que a civilização castrou.

As sociedades protectoras de animais quadrúpedes e bípedes têm-se esforçado por negar à vida a legítima afirmação das suas leis profundas. O instinto, porém, protesta ainda. E homens e bichos, irmanados no mesmo ardor que ele desperta, encontram-se dia a dia nos terreiros que o sol da razão não ilumina. Ora, é no Ribatejo o sítio do mundo onde esse embate é mais belo e natural.

A luta, ali, não é para servir nenhum senhor, ou distrair a atenção inquietante das massas. É um lúdico acto de coragem, alegre e soalheiro. Por sentir que o combate que vai travar não é um fruto do rancor mas o desabrochar de uma espontânea solicitação, o campino veste-se de garridos trajes, ergue na mão um pampilho, o ceptro da sua majestade, o símbolo duma grandeza feita de graça e valentia e, quando soa na praça o clarim da refrega, é assim vistoso e confiado que ele se expõe. E chama festa brava à lide gloriosa!

O toureiro português, ribatejano, é a prova de que nem tudo no homem é cobardia de açougue, mistificação vegetariana. A vida é um desempate permanente e o que é preciso é jogar com limpeza e formosura em cada número de caprichosa roleta.

Dos lastimáveis defeitos do português, o mais feio é certamente a manha sorna de ter sempre na manga do casaco um baralho falsificado, uma navalha de ponta e mola, uma pistola de cinco tiros, um porrete erguido por detrás de uma bouça, uma aleivosia diabolicamente maquinada. Há ainda no resto do País vestígios de uma sinceridade virginal que a casuística não conseguiu corromper. Mas, inculta e perdida nos boqueirões das serras, exprime-se, nos seus momentos de desvairo, com a bruteza dos brutos.

No Ribatejo, porém, às portas da capital, o campino pode dar largas aos seus impulsos sem ferir o semelhante. A natureza conservou-lhe esse dom. O seu colete encarnado é uma mancha quente de sangue e de alegria a atrair a fúria dos bisontes. Num gesto voluntário de puro risco, a força humana lança o desafio, possessa do gosto sensual de viver ou de morrer em beleza no meio de um cenário aberto, fresco e generoso. E é bonito vê-la triunfar, dominar, e marcar a fera com a brasa da coragem que a venceu.


~ Miguel Torga (1907-1995), in "Portugal" (1950), págs. 107-9

Comentários